sexta-feira, 19 de março de 2010

Porque a dor?

As razões divinas da dor


Porque a dor?

Porque a dor? Eis o primeiro grito da alma. Ferido pela moléstia, acabrunhado pela morte do pai, da mãe ou de um filho, o homem só tem um grito: “Porque?”

A esta angustiosa interrogação sucede o silêncio; o olhar se torna fixo. Dir-se-ia que ele procura sondar o abismo em que a felicidade se sepultou. Depois, o homem ergue a cabeça, fita suplicantemente os amigos que o rodeiam, e repete a mesma palavra, única que a dor sabe proferir: “Porque? Porque?”

Porque? Quem o sabe? Ninguém responde a essa pergunta, nem a ciência, nem a filosofia. E a própria amizade se cala, na impossibilidade de satisfazer a essa pungente interrogação. Quando os amigos de Job o viram prostrado sob o peso de tão grandes dores, permaneceram silenciosos sete dias, pois não sabiam consolá-lo. E, na ruína de Tróia, Virgílio nos descreve as mulheres sentadas junto ao mar, tristes e mudas, com os olhos banhados de lágrimas e um longo olhar fixo nas ondas murmurantes. É assim o homem sob os golpes da dor.

Quando pela primeira vez essas imagens amarguradas passaram ante meus olhos, eu me achava ainda na primavera da vida; lembro-me de não as ter compreendido. E achei-as exageradas. Esses prolongados silêncios me pareciam inexplicáveis. Mais tarde, em presença de grandes infortúnios, conheci, por meu turno, a dor amarga de nem mesmo ousar abrir os lábios, pois sentia que as minhas expressões de alento seriam inúteis: eu não conseguiria consolar.

E eis porque, se existe uma força misteriosa capaz de suavizar as mágoas, ela deve ser invocada. Acaricie ela ternamente a cabeça daquele que sofre e murmure aos seus ouvidos algumas dessas palavras que a própria amizade desconhece.

Se pode responder ao “porque?” doloroso dos que padecem – e aos quais a terra não oferece uma resposta – seja ela bendita.

Porque a dor? Porque, se Deus é bom? Um dia dirigi esta pergunta a um ancião que me disse: “Precisamente, meu filho, porque Ele é bom.” Quase me revoltei, ao ouvi-lo; hoje já não me revolto; murmuro apenas: “Talvez!”

De outro modo serieis cruel, ó meu Deus! Vós criastes o homem, que é Vosso filho, e ao qual dedicais Vosso amor, pois não o teríeis, certamente, criado se não o amasseis. Sois grande, imenso, infinito, ao passo que o homem é pequeno e débil.

Não seria possível admitir que gostosamente o magoásseis. Eu não molestaria uma criança, junto á qual me considero demasiadamente forte; envergonhar-me-ia de abusar assim de minha superioridade. Que blasfêmia é, pois, imaginar que abusais de Vossa força, ó meu Deus, castigando-nos sem um objetivo e sem razão, abandonando-nos friamente às leis fatais que nos esmagam!

Ó meu Deus criastes jamais uma alma para outro fim além da felicidade? E se a Vossa mão pousa dolorosamente sobre ela, não é justo confessar, com submissão, que só por bondade assim procedeis, em virtude de misteriosos desígnios que um dia compreenderemos?

Há homens que protestam. Para eles tem o valor de um insuportável paradoxo a afirmação de que as dores e as aflições deste mundo decorrem da bondade divina. Contudo, reflitamos.

Não podemos voluntariamente, com deliberado intento, provocar o sofrimento de uma pessoa que estimamos? Em certas circunstâncias, não é possível que a façamos sofrer tanto mais quanto maior é o afeto que lhe consagramos? A questão se resume na resposta a essas interrogações.

Eis uma criança que brinca á borda de um abismo. Quer colher uma flor ou perseguir uma borboleta; vai cair. De repente, dois braços vigorosos a arrebatam, e com uma violência tanto maior quanto mais ternos forem. A criança grita, sofre. De onde resulta esse sofrimento? Evidentemente do coração e do amor de sua mãe.

Observai agora outra criança. Tem á mão uma faca, com a qual se vai, fatalmente, ferir. Sobrevêm o pai, que a repreende e lhe arranca a faca, talvez com violência, talvez punindo o filho para que não recomece. A criança grita e intimamente acusa o pai. Só mais tarde, reconhece o mal de que o libertara a solicitude paterna.

Outro exemplo. Está doente uma criança. Sua mãe, tomando-a nos braços, apresenta-a ao cirurgião, que com o bisturi vai operá-la. A criança, a gritar, repele o médico. Quem ousará dizer que essa mãe é cruel? Talvez o filho o diga, em um acesso de dor. Mas quem contempla a cena, mais se compadece da mãe do que da criança. O amor materno é naquele instante cruciantemente torturado.

O que tão belo, tão luminoso e tão comovente nos parece, quando vemos em ação a solicita dedicação paterna, mais grandioso é em Deus. Sem dúvida, se não sabeis que somos feitos para Ele, e que para Ele tendemos irresistivelmente; se considerais este vasto universo como um campo fechado em que lutam forças fatais, a dor não tem sentido.

Se sucumbis ao peso da amargura, que quereis que eu vos diga? Porque adquiristes essa moléstia? Porque deixastes que vosso filho fosse esmagado sob as rodas de um carro?

Devorareis silenciosamente a vossa amargura, sem importunar com os vosso gritos em céu vazio e os homens que nada podem fazer em vosso favor. A punição daqueles que vivem sem Deus, é sofrer sem consolação.

Sai, porém, desse sombrio corredor; retirai-vos desse antro; colocai-vos na grande luz da Religião e da razão. Acreditai em Deus, em um Deus sábio, poderoso e bom, que criou os homens para si, que, em um rápido instante, os faz viver no mundo, a fim de que eles aí se tornem dignos da eternidade; a fim de que o espírito, o coração, a personalidade e o amor sejam verdadeiramente criados por seus esforços.

Acreditai em um Deus que, enquanto os homens, Seus filhos, trabalham nesse grande intento, vela por eles e os auxilia, desviando-lhes os perigos, estimulando-os na luta, para que atravessem o mundo sem aviltamento e sem corrupção.

Crede firmemente nisso; começareis, então, a entrever, em uma luz divina que já será um começo de consolação, de onde vem a dor e porque Deus a permite.

Deus, criando o mundo, fê-lo, deliberadamente, muito estreito para nós; de sorte que aí não nos podemos mover sem sofrimento, sem que a cada instante encontremos, dolorosamente, os seus limites. Deus quis, assim, que diante de tão restritas fronteiras nós aspirássemos a mais; ignoro, porém, que Ele pudesse proceder de outro modo.

Quando um dia nos acharmos no infinito, aí dilataremos amplamente a nossa visão, sem que se nos anteponham limites nem fronteiras.

Oh! Seremos, então, venturosos! Mas de qualquer forma que Deus dispusesses as condições deste pobre mundo, ele seria necessariamente muito pequeno para nós. Uma alma não poderia aí viver sem sofrimento, não se estenderia neste leito de procusta sem o achar demasiadamente curto, não desdobraria as asas sem encontrar obstáculos.

Eis a terra como feita para as nossas provações, a fim de que, sempre constrangidos, nos aspirássemos a mais vastos espaços e ambicionássemos infinitos horizontes.

Suponde, entretanto, uma criatura que, em vez de abrir as asas, as encolha; que, sem se elevar nos ares, voluntariamente se prenda á terra; que não ache muito estreito esse leito de procusta, onde, ao contrário, se deita folgadamente; suponde uma grande águia das montanhas, a qual, sem gemer na apertada gaiola em que a encerraram, admire a sua prisão de ouro ou de prata, pintada de azul ou de verde; imaginai, enfim, um ser imortal que já não expanda suas forças infinitas, que se deleite na terra, onde se enclausura e se degrada; que esteja prestes a se desonrar e a perder-se: porque Deus não interviria?

Porque Deus não lhe tornaria dolorosos esse limites ás suas aspirações, que essa alma esqueceu? Porque não tornaria cruciante a situação dessa criatura sem ideal, a fim de que ela erguesse os olhos?

Porque não arrancaria a faca das mãos dessa criança? E se essa alma imprudentemente costeasse o abismo, porque Deus a não afastaria violentamente, com a sua mão paterna, desse precipício a que ela se ia arrojar? Porque, finalmente, se esse ser humano estivesse enfermo, Deus, que é pai e mãe, não o confiaria á ciência do cirurgião? E se assim fizesse, porque o homem, primeiramente aturdido, ofuscado pelas lágrimas, não diria em seguida: “Meu pai, eu vos agradeço o bem que me fizestes?”

Eis o sentido da dor, o princípio essencial, fundamental, do seu tratamento divino. Ao “porque” da alma que sofre, a Religião só oferece uma resposta terna e consoladora. Ela diz:

“Homem, tu nasceste para Deus. Se, pois, tivesses tido a coragem de atravessar este triste mundo sem te maculares, com um fervoroso amor a Deus, com um vivo e ardente impulso do teu coração, a dor não teria jamais existido. Ela só foi criada para suprir a tibieza do teu amor”.

Com efeito, no começo da vida, sob as árvores do Éden, só havia o amor, e ele bastava. O papel que a dor hoje representa, era, então, exercido pelo amor, e muito melhor.

A dor ilumina, purifica, desprende o homem das coisas transitórias; a dor eleva os corações. Mas tudo isso é alcançado pelo amor, com mais rapidez e mais grandeza. Se, pois, ele não houvesse sido olvidado no paraíso; se, em vez dessa leve centelha que dele nos resta, nós tivéssemos conservado a chama viva do amor primitivo, a dor não teria jamais existido.

Ela é uma asa divina que nos foi concedida, quando nos abismávamos na matéria; Deus no-la ofereceu, bondosamente, como um auxílio.

Eis o que cumpre admitir. Além dessa crença, só há a desesperação. Escolhamos essa fé ou a odiosa fatalidade que nos esmaga.

Sim, nas nossas dores, é necessário, de fato, escolher a fria mão da fatalidade que nos acha sob a roda de um carro e que, sem piedade, nos aniquila, ou a mão terna e paternal de Deus que em nós se pousa com respeito e compaixão, para nos tornar melhores. Deus bom ou Deus tirano; não há um termo médio.

Para mim, a escolha está feita. Nunca acreditarei, meu Deus, na Vossa indiferença, na Vossa injustiça ou na Vossa crueldade. Beijo-vos a mão; e com os olhos obscurecidos pelas lágrimas, não compreendendo, embora, o motivo da dor que me tortura, só estas palavras quero ter nos lábios: “Piedade, Vós sóis bom! Piedade, Vós sois grande e sábio!”.

Mas não vos devemos limitar a esse princípio geral; convém examinar as suas minudências e seguir, com a vista e o coração, a mão de Deus quando se apóia dolorosamente no homem e, por meio da dor, o arranca a todos os perigos e o eleva pouco a pouco á beleza moral e á virtude.

(Excertos do livro: A Dor – Monsenhor Bougaud)

PS: Grifos meus